31 de maio de 2010

Caiu a ficha da honestidade como valor atemporal

 Por Sonia Fleury -
Boletim de Conjuntura. Maio - FGV

Foi aprovado neste mês, na Câmara e no Senado, o projeto de lei complementar  (168/93, 518/2009 e outros), conhecido como Ficha Limpa, que agora irá para sanção presidencial, o que deverá ocorrer em breve. O projeto de lei Ficha Limpa deve ser visto como um “case study” sobre as relações entre Estado e sociedade nos dias atuais, no que concerne ao exercício da política.

Quando o Congresso atravessa um dos piores momentos em termos de baixa  popularidade, sendo alvo do descrédito popular, a aprovação deste projeto mostra que a  sociedade conseguiu separar com clareza a política  dos políticos. A valorização da  política se deu pela intensa mobilização da sociedade civil organizada que, por meio da  articulação de 44 entidades no Movimento de Combate a Corrupção Eleitoral (MCCE),  construiu e encaminhou ao Congresso um projeto de lei de iniciativa popular (518/2009) com o apoio inicial de 1,6 milhão de assinaturas de eleitores. 

Recebido com ceticismo por políticos e pelo governo, que chegou a declarar que esta não era uma de suas prioridades atuais, o movimento que o impulsionava não se esmoreceu diante destas reações iniciais após dois  anos de trabalho de mobilização social. Ao contrário, não parou de crescer, tendo chegado, a recolher pela internet um total de 4 milhões de assinaturas. Além disso, os deputados passaram a ser pressionados por mensagens eletrônicas que inundavam seus correios eletrônicos.

Esta manifestação surpreendente de cidadania ativa contrasta com todas as pesquisas de opinião que mostram o descrédito da população com os políticos profissionais, o que demonstra que a valorização da política não dependeu da sua vinculação à atividade dos políticos. Ao contrário, a mobilização da cidadania fez com que o governo recuasse de sua posição inicial e reconhecesse que deveria ouvir e incluir na sua agenda as prioridades da sociedade.

Da mesma maneira, os parlamentares também tiveram que responder à pressão social e colocar em votação o texto do relator preservando o espírito original da proposta que torna inelegíveis por oito anos posteriores ao término da pena os políticos condenados por decisão de colegiado da Justiça. São considerados inelegíveis os condenados por crimes dolosos, tráfico de entorpecentes, crimes contra a vida, contra a economia popular, contra o sistema financeiro e o meio ambiente, entre outros.  Desta forma o projeto ficha limpa vem inserir mais algumas inelegibilidades àquelas já estipuladas pela Lei Complementar no. 64/90 e aumenta de três para oito anos o prazo de inelegibilidade. Uma das novidades da nova lei é que não serão mais preservados os direitos políticos de quem renuncia ao mandato para escapar de eventual cassação depois de denúncia.  A inelegibilidade alcançará o acusado desde o momento em que é aceita a denuncia.

O texto original era mais restritivo, pois considerava inelegível o candidato condenado por um juiz de primeira instância ao invés de por uma instância colegiada e não previa a possibilidade do candidato pedir efeito suspensivo quando apresentar recurso contra a decisão do colegiado. No entanto, o MCCE aceitou a argumentação do relator de que era preciso conciliar dois fatores: por um lado, o  desejo da sociedade de evitar que pessoas sem ficha limpa disputem cargos eletivos, e, de outro, o direito ao contraditório e à ampla defesa. 

Inúmeras foram as tentativas de parlamentares de desvirtuar o texto originalmente proposto pelas organizações sociais, em especial no que tange a condenações por corrupção eleitoral, compra de votos, doação ou uso ilícito de recursos de campanha e abuso de autoridade, o que afeta  muitos dos parlamentares que estavam julgando o projeto. Também foram feitos destaques para excluir do texto os crimes contra o meio ambiente e a saúde pública, dentre o rol daqueles que tornam a pessoa inelegível. Apesar da resistência da bancada ruralista foi mantido o impedimento da candidatura dos condenados por crimes contra o meio ambiente com pena superior a dois anos. As alegações para adiar a votação por mais de oito meses e por tentar emendar e desfigurar o projeto de lei foram tanto pragmáticas, tais como ser difícil encontrar um “candidato virgem” ou com ficha limpa, quanto fundamentadas no princípio da presunção da inocência, o que só tornaria inelegíveis os políticos com todos os recursos transitados em julgado. Desta forma, as emendas tentaram manter a situação como é atualmente, mas este divórcio entre representantes e representados não pode perdurar. Um acordo de lideranças colocou o projeto em votação além de eliminar as emendas que o desvirtuavam, mantendo o texto do relator que foi aprovado na Câmara e no Senado.

O que torna esta lei complementar um caso exemplar?

Primeiramente, é necessário refletir sobre o sentido da política no momento atual. Enquanto o TSE informa que houve uma queda de 25,65% no número de eleitores com 16 e 17 anos em relação às eleições de 2006, vemos que os jovens se mobilizaram e foram atores fundamentais para garantir o desfecho do caso de corrupção no governo do Distrito Federal. O volume de assinaturas alcançado pelo projeto de Lei Ficha Limpa é outro indicador de que a sociedade civil está encontrando novas formas e veículos de participação política, muito embora se aprofunde o  fosso que separa a sociedade dos seus representantes formais no Parlamento.

Esse paradoxo entre elevação da mobilização política e aumento do descrédito da representação precisa merecer uma análise mais profunda e a construção de uma agenda de reformas institucionais que impeça que se aprofunde o divórcio entre a política e os políticos, a bem da consolidação institucional de nossa democracia. Em outras palavras, é necessário rever a institucionalidade atual de forma a construir canais efetivos de atuação política da sociedade que permitam atualizar e fortalecer a democracia representativa.

O caso do Projeto Ficha Limpa mostra claramente quais são os passos nesta direção, já que se tratou de um projeto de lei apresentado pela cidadania, nos termos previstos no artigo 14 da Constituição Federal de 1988.  A CF/88 consagra a convivência da democracia representativa com a democracia participativa no seu artigo primeiro, parágrafo único, onde se lê: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.  

E no artigo 14 agrega que a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos e, nos termos da lei, mediante:
  1. Plebiscito;
  2. Referendo;
  3. Iniciativa popular.
No entanto, a legislação que regulamentou os instrumentos constitucionais de participação popular tardou uma década a ser promulgada (Lei 9.709 de 18/11/1998), praticamente repetindo o que estava no texto constitucional. Enquanto o plebiscito é utilizado como uma forma de consulta sobre qualquer questão de interesse público, não tendo feição normativa, o referendo é um instrumento concernente a ato normativo, com caráter necessariamente vinculativo. Já a iniciativa popular legislativa diz respeito à elaboração de projeto de lei por parte da sociedade para sua apresentação à Câmara dos Deputados, desde que o projeto seja subscrito por,  no mínimo 1% do eleitorado, distribuído em pelo menos cinco estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores em cada um deles. 

As restritivas condições estabelecidas para a iniciativa popular foram superadas em alguns poucos casos, como a lei que ampliou o rol de crimes hediondos inafiançáveis, a partir da mobilização desencadeada pela tragédia que acometeu a escritora Glória Perez e que contou com o apoio da mídia (Lei 8.930/94). Outro projeto de lei de iniciativa popular aprovado tratou de coibir a compra de votos e reduzir a corrupção eleitoral (Lei 9.840/99). Em 2005 foi aprovada a lei de iniciativa popular que criou o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Popular.  Neste  último caso, como também era criado o Fundo Nacional de Habitação e seu Conselho Gestor, ou seja, alterações na estrutura administrativa do Estado que são prerrogativas do Executivo, foi necessário se chegar ao entendimento que o projeto popular constitua-se em exceção ao princípio de reserva de iniciativa do Chefe do Poder Executivo. 

Como vemos as possibilidades de exercício da soberania diretamente pela cidadania são extremamente limitadas. Nem mesmo os tradicionais instrumentos de  recall e veto evogatório foram previstos no texto constitucional, embora usados em outros países. Através do instrumento do recall fica garantido à população o direito de cassar um representante eleito que não atua de forma prevista, nos termos da legislação. O veto popular pode ser entendido como um referendo revocatório, pois estabelece as condições nas quais a população pode derrubar uma legislação aprovada pelo Congresso. Proposta de emenda constitucional com a  inclusão da revogação de mandatos tramita no Congresso. Também tramita proposta que resgata o princípio da soberania popular, ao permitir que plebiscitos e referendos sejam convocados seja por iniciativa popular, seja por iniciativa de um terço de membros de uma das casas do Congresso (PL 4.718/2004).

Este é o momento oportuno de se cobrar a revisão desta precária institucionalidade que respalda a democracia participativa no processo legislativo. É preciso incluir os instrumentos do veto e da revogação do mandato, ampliando o rol de mecanismos de participação, assim como definir regras que garantam a prioridade na tramitação dos projetos de leis oriundos da iniciativa popular. No momento, só se pode contar com a pressão popular para assegurar que o enorme esforço exigido para coleta de assinaturas não fique postergado para entrar em votação.

No caso emblemático da Lei Ficha Limpa o Senado alterou o texto aprovado na Câmara, alegando necessidade de compatibilizar os tempos verbais: passou de os que tenham sido condenados para os que forem condenados. Criou-se, com este recurso gramatical, a possibilidade de interpretação de que a inelegibilidade prevista na Lei só se aplicará a partir de 2012, livrando os políticos atuais para se candidatarem nas próximas eleições, mesmo os que tenham sido condenados nos termos previstos nesta lei. Se este for o entendimento jurídico, a honestidade começa amanhã.

Enquanto se discutem diferenças de tempos gramaticais que terminarão por salvar os políticos atuais a sociedade elege a honestidade como um valor atemporal. Porém, não se pode construir democracia onde impera o divórcio entre opinião pública e institucionalidade política. É preciso, pois, romper a letargia dos poderes instituídos e procurar acompanhar as mudanças que se processam na sociedade. Os que forem brasileiros, sigam-me, como bem lembrou a escritora Ana Maria Machado.

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