28 de junho de 2010

Humanitarismo 2.0: Ushahidi

Por Anad Giridharadas
Artigo do new york times, traduzido na Folha de São Paulo. 

Pode a tecnologia "wiki" encontrar Osama bin Laden? Imagine se qualquer paquistanês pudesse enviar um SMS anônimo às autoridades sugerindo onde procurar. Cada local seria marcado em um mapa. Os pontos talvez ficassem espalhados, com pistas promissoras misturadas às inúteis. Mas, um dia, muitos pontos poderiam apontar para uma mesma aldeia, e tropas seriam enviadas.

Esse tipo de mapeamento no qual todo o mundo é um informante está levando a revolução da Wikipédia para o trabalho de agentes humanitários e soldados. E uma força importante por trás dessa mudança é uma pequena organização nascida no Quênia, chamada Ushahidi, que virou heroína nos terremotos recentes no Haiti e no Chile e que pode ter algo de maior para nos contar a respeito do futuro do humanitarismo, da inovação e da natureza daquilo que rotulamos como verdade.
 
Após a contestada eleição de 2007 no Quênia, houve violência. A conhecida advogada e blogueira Ory Okolloh, que estava radicada na África do Sul, mas retornara ao seu país para votar e observar o pleito, recebeu ameaças por causa do seu trabalho e voltou ao exílio. Ela então colocou no ar a ideia de uma ferramenta de mapeamento pela internet, que permitisse que as pessoas relatassem anonimamente a violência e outros incidentes. Ases da tecnologia viram o post dela e construíram a plataforma web Ushahidi num fim de semana prolongado.

O site recolhia relatos enviados por celular a respeito de distúrbios, refugiados retidos, estupros e mortes, e mapeava as localizações citadas pelos informantes. Ele recebia mais testemunhos (significado de "ushahidi" em suaíli) com maior rapidez do que qualquer jornalista ou monitor eleitoral.
 
Quando ocorreu o terremoto haitiano, o Ushahidi entrou em ação de novo. As rádios divulgaram um número para o qual foram enviados milhares de SMSs sobre a localização de vítimas presas em escombros. Nos EUA, um difuso exército de haitiano-americanos os traduzia em um "mapa de crise". De uma sala de situação na Escola Fletcher de Direito e Diplomacia, nos arredores de Boston, os voluntários trocavam mensagens com a Guarda Costeira dos EUA no Haiti, dizendo onde procurar vítimas.
 
Quando o terremoto foi no Chile, o Ushahidi foi mobilizado outra vez. Muita coisa poderia dar errado nesse modelo. As pessoas poderiam mentir, pegar o endereço errado, exagerar a situação. Mas mapas de crise são capazes de revelar padrões subjacentes de realidade: por quantos quilômetros terra adentro um furacão matou? Os estupros são dispersos ou concentrados perto de quartéis?
 
O Ushahidi sugere um novo paradigma para o trabalho humanitário -não mais o "de um para muitos", em que jornalistas e agentes humanitários relatam a calamidade e distribuem ajuda com os dados à mão. No novo paradigma, as vítimas fornecem informações do terreno; uma multidão global e auto-organizada de voluntários traduz as mensagens e ajuda a orquestrar o auxílio; jornalistas e agentes humanitários usam os dados para focar sua ação.
 
O Ushahidi representa também uma nova fronteira de inovação, área em que o Vale do Silício é o paradigma dominante - com suas universidades, financistas, mentores, imigrantes e patentes robustas. O Ushahidi vem de um outro mundo, onde o empreendedorismo nasce da dificuldade, e os inovadores se preocupam em fazer mais com menos, em vez de tentar vender alguma coisa nova e melhorada.
 
Como o Ushahidi surgiu em meio a uma crise, ninguém tentou patenteá-lo ou monopolizá-lo. Já que no Quênia pouca gente tem acesso a computadores, o Ushahidi fez com que seu sistema funcionasse por celular. Por não ter apoio de investidores, ele usou um software de fonte aberta, liberando assim outros para reformatarem a ferramenta em novos projetos.
 
O Ushahidi já foi adaptado na Índia para monitorar eleições, em outras partes da África para apontar casos de escassez de medicamentos, no Oriente Médio para recolher relatos sobre violência bélica e, em Washington, com a colaboração do jornal "Washington Post", para construir um site que mapeia ruas bloqueadas por nevascas e a localização das máquinas que retiram neve da pista.

A cada nova aplicação, o Ushahidi transforma discretamente a noção de ser testemunha em uma tragédia. Por muito tempo, isso era feito inicialmente por jornalistas, em tempo real, depois por relatos de vítimas/autores como Anne Frank e, finalmente, por historiadores. Mas, nesta era instantânea, há um tipo mais imediato de  depoimento: o de verdades agregadas, médias, "boas o bastante". "Estamos avançando além da ideia de que a informação é completamente verdadeira ou completamente falsa", disse Patrick Meier, aluno da Fletcher que dirige a operação de mapeamento de crise do Ushahidi. O que saberíamos sobre o que ocorreu entre turcos e armênios, entre alemães e judeus, se cada um deles tivesse tido a chance, antes das trevas, de declarar para sempre: "Eu estive lá, e isso aconteceu comigo"? 

Saiba mais sobre o Ushahidi (em inglês):


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