Selvino Heck
A Copa está revelando ao mundo a África do Sul e o povo africano, livre e alegre. Não podia ser melhor: na primeira década do século XXI, todos e todas podemos ver que os tempos de escravidão e apartheid já se foram e que, mesmo no chão sofrido, duro e pobre de seus países, emerge uma gente com virtudes e jeito de ser há muito perdidos pelos antigos colonizadores, que não puderam tirar o eterno sorriso, o olhar vivo das crianças e das mulheres, a cativante surpresa da felicidade estampada no rosto e na alma.
Os de língua portuguesa temos uma palavra intraduzível em outros idiomas: saudade. É aquela dor no coração que nos deixa tristes e lacrimosos, que nos faz suspirar fundo, que nos faz lembrar no fundo do coração de alguém ou de alguma coisa importante que acontece. Saudade é um estado de espírito.
Pois os africanos têm a sua ‘saudade’. É Ubuntu, "uma forma solidária e participativa de enxergar o mundo numa visão de mundo nascida em sociedades africanas, onde não se enxerga apenas o próprio umbigo, mais se vê o mundo de maneira holística, integrante e integradora. Ter ou ser Ubuntu é lutar contra qualquer tipo de discriminação, ter cidadania ecológica, esforçar-se para melhorar a vida do outro, participar da vida do outro, respeitar a opinião alheia e não humilhar e oprimir. É ser e estar em sociedade, sendo humano e agindo e interagindo com outros seres humanos" (Fátima Reis).
Ubuntu é uma palavra comum em várias línguas africadas, geralmente traduzida como humanidade. Tem muitos significados: amizade, solidariedade, compaixão, perdão, irmandade, ao amor ao próximo, capacidade de entender e aceitar o outro.
Segundo o Prêmio Nobel da Paz, o bispo sul-africano Desmond Tutu, "uma pessoa com Ubuntu está aberta e disponível aos outros, não preocupada em julgar os outros como bons ou maus, e tem consciência de que faz parte de algo maior e que é tão diminuída quanto seus semelhantes que são diminuídos ou humilhados, torturados ou oprimidos. É a essência do ser humano. Nossa humanidade são é afirmada se tem conhecimento da dos outros."
Ubuntu é uma ética ou ideologia da África. A palavra é de origem bantu. Ubuntu é um dos princípios fundamentais da nova república da África do Sul e está intimamente ligado à idéia de uma Renascença Africana. Na esfera política, o conceito do Ubuntu é utilizado para enfatizar a necessidade da união e do consenso nas tomadas de decisão, bem como na ética humanitária envolvida nessas decisões. No Zimbábue, Ubuntu tem sido usado como forma de resistência à opressão existente no país.
Estamos em tempos em que falta Ubuntu para homens e mulheres e para a humanidade. Vale o ter mais, vale o que posso juntar de bens materiais, o quanto compor todos os dias ou semanas no shopping-templo. Os outros só servem se posso me servir deles. As mansões estão cheias de grades e câmeras, porque o medo do outro supera a vizinhança e a solidariedade. As Bolsas de Valores todos os dias gritam seus milhões e bilhões, como se ficar rico resolvesse alguma coisa na vida. Há uma sede de amealhar bens, de buscar o luxo e o supérfluo. Para isso se fazem guerras, se submetem povos, como o próprio africano, por séculos e ainda hoje. Se alguém morre de fome ou está na miséria, que tenho a ver com isso? Se alguém sofre, ele ou ela que busquem solução onde ela estiver, desde que não me seja exigido nenhum gesto de apoio.
Mesmo no futebol, onde onze formam um time que deve jogar junto, coletivamente para chegar ao gol e à vitória, há falta de Ubuntu. "Olhando os fenômenos do futebol no mundo nos interrogamos: o que é paixão e cultura popular e o que é mercantilização? No lado interno, o futebol é paixão, pulsão e arte; no lado externo, ele é parte importante do mundo globalizado do capital e de um grande negócio. Hoje, cada vez mais, estes lados não se separam. Pelo contrário, convivem e se alimentam. Todos lucram o ano todo com o futebol. Como espetáculo planetário, é a face visível de um Império e um dos dispositivos mais potentes e universais da lógica do lucro. A mercantilização e a monetarização transformaram o futebol numa imensa máquina, que atua no macro e no micro, até o nível mais subjetivo dos corpos dos atletas e mentes dos espectadores. Podemos mesmo falar de ‘economia política do futebol’ como parte da economia política capitalista. Daí nos perguntarmos: o que resta de arte e paixão do povo neste mundo do ‘big business foot’? O que diria Mané Garrincha, eterno romântico, de tudo isso? Será que nada nos resta a não ser assistir ‘Garrincha, alegria do povo’, filme dos anos 60, de Nelson Pereira dos Santos e o mais recente e formidável ‘Invictus’ do diretor Clint Eastwood, em que Nelson Mandela nos mostra a postura político-pedagógica e cultural correta frente ao fenômeno do esporte?" (Cláudio Nascimento, Informativo - Rede de Educação Cidadã, jan/fev/mar 2010 - www.recid.org.br).
Para o ex-presidente e Prêmio Nobel da Paz Nelson Mandela, para ser feliz é preciso viver em coletividade, em harmonia com que está à sua volta: Ubuntu.
Os africanos nos transmitem Ubuntu. Que o futebol e a vida nos levem a viver intensamente!
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